Entrevista com Garry Kasparov

O que tem haver Negócios e Xadrez? Por Garry Kasparov


Como explica o enxadrista Garry Kasparov nesta entrevista, tanto no xadrez como na vida, há três elementos essenciais do mecanismo de tomada de decisões: material, tempo e qualidade.

No marco de um tempo e um espaço próprios, todo jogo cria, com suas regras, uma ordem no mundo imperfeito e confuso. Jogo estratégico por excelência, o xadrez é uma confrontação na qual o vencedor demonstra ter “visão” mais apurada do que seu oponente, e os grandes jogadores são capazes de antecipar mentalmente os melhores caminhos possíveis para um desenlace vitorioso. “Num sistema matematicamente finito, pode-se calcular tudo, mas o xadrez é grande demais para isso”, explica Garry Kasparov durante uma entrevista exclusiva. “Há um grande mal-entendido a respeito da natureza do xadrez”, continua. “Para a matemática, o jogo é finito, mas, para nós, seres humanos, ele é matematicamente infinito. O número de posições, ou seja, a soma de todas as posições possíveis contém 45 zeros. Acredito que é suficiente para considerá-lo matematicamente infinito.”

Nesta entrevista exclusiva, Kasparov se entusiasma, eleva a voz grave e mexe os braços com gestos amplos. Sua atitude muda quando ouve. A imobilidade é total e a atenção intensa. Capta as perguntas antes que terminem de ser formuladas. Mais do que dono de um temperamento calmo, cultivado nas muitas horas diante do tabuleiro, o chamado “Monstro de Baku” (sua cidade natal, no Azerbaijão) mostra paixão quando fala do xadrez ou se aprofunda nos elementos fundamentais para a tomada de decisões.

Faz tempo que o sr. trabalha numa coleção de livros onde vincula a evolução do xadrez com as idéias científicas e sociais de cada época.

Em certa medida, as mudanças no jogo refletem as mudanças na sociedade. Os novos conceitos estão em consonância com as idéias sociais e culturais predominantes em sua época. Não é casual que o primeiro campeão mundial de xadrez, Wilhelm Steinitz, que introduziu conceitos revolucionários no jogo na segunda metade do século 19, tivesse um pensamento alinhado com a ciência tradicional e que seu sucessor, Emanuel Lasker, contemporâneo de Einstein e de Freud, acreditasse na relatividade e na psicologia. Nos cinco volumes que escrevi, mostro a interconexão entre as novas idéias apresentadas por meus grandes antecessores e sua época.

Como se refletem no xadrez os novos conceitos sociais e culturais? Por exemplo, como as teorias de Freud sobre o inconsciente mudaram o jogo?

A teoria do xadrez tomou forma no tempo da física e da matemática clássicas e foi introduzida pelo primeiro campeão mundial, Steinitz. Nessa época, acreditava-se que uma teoria universal poderia responder a todas as perguntas, e Steinitz promovia essa noção no xadrez. Seu sucessor, Lasker, teve um estilo distinto: em vez de fazer a melhor jogada, fazia a melhor jogada contra aquele adversário. A ênfase não estava na verdade última, mas em jogar contra um rival; o valor de cada movimento era relativo. Lasker introduziu o elemento psicológico. Hoje, para os jovens jogadores, isso é óbvio.

As decisões no xadrez atual são tomadas de forma mais automática?

Jogamos xadrez rápido e, muitas vezes, pela internet. O computador é um componente do preparo. Quando eu era criança, tinha poucos livros a meu alcance, e cada exemplar era um tesouro que eu lia com avidez; era preciso muito esforço para encontrar a informação. Agora, com um clique do mouse acessamos milhões de partidas. Com tanta informação, temos um problema logístico diferente: como diferenciar aquilo que é valioso daquilo que não aporta nada, o falso do autêntico? O que deve ser incorporado e o que deve ser ignorado? Um interessante paradoxo é que antes tínhamos menos informação e mais tempo para decidir, e hoje temos mais informação e menos tempo. De fato, suportamos mais pressão. O grande perigo de nossa época é que muitos dirigentes confiam em que vão encontrar

uma resposta e não tomam a iniciativa, não querem assumir o risco de decidir. Mas, no fim do dia, somos nós, e não os computadores, que tomamos as decisões. Se você quer triunfar, deve aprender a não se deixar oprimir pela informação. Eu acredito que muitos ficam sepultados sob o furacão de dados.

Como isso pode ser evitado?

Não há uma receita universal. Primeiro, precisamos entender que o computador não é um dispositivo que nos fará felizes com respostas “pré-cozidas”; ele apenas oferece informação. Segundo, devemos desenhar nossa própria fórmula para aceitar ou rejeitar informação. Para trabalhar com aquilo que nos rodeia e ajustar nossa própria fórmula de tomada de decisões, é muito importante reconhecer nossas fortalezas e nossas fraquezas. Eu fico entristecido ao escutar os típicos discursos de auto-ajuda, que apontam por igual, quando na realidade cada pessoa é única. Alguns se sentem mais à vontade com os dados; outros, como eu, são mais intuitivos.

Alguns são mais pacientes, podem esperar todo o tempo do mundo; outros, nem tanto. Não acredito que a paciência, a impaciência, a objetividade e a intuição sejam boas ou más em si. São componentes. Antes de decidir, devemos analisar os componentes de nosso mecanismo de tomada de decisões. Anatoli Karpov tinha um estilo... Não diria defensivo, mas cuidadoso. Era um gênio para obter o máximo efeito com os mínimos recursos. Eu era mais agressivo. Podia varrer meus rivais com os ataques. Não gosto dos detalhes; prefiro captar o panorama global e reconhecer como posso compensar a perda de material com qualidade ou tempo, ou o inverso.

Material, tempo e qualidade?

Estou trabalhando num livro em que desenvolvo uma teoria de acordo com a qual os três elementos essenciais do mecanismo de tomada de decisões são o material, o tempo e a qualidade. O mais complicado é a qualidade: no xadrez pode ser a estrutura de peões, o espaço ou as peças ativas; na vida, a qualidade se manifesta de muitas formas. O material é óbvio. E o tempo é operativo: tempo versus dinheiro, tempo em troca de material. Mas a qualidade implica diversos elementos, e muitas pessoas não sabem como inseri-la em sua escala de valores. Ao escolher, comparamos. Quando optamos por investir em uma casa nova ou enviar nossos filhos para a universidade, também entra em jogo a qualidade, mesmo que não tenhamos consciência disso. Em suma, sempre tentamos ajustar a estratégia em termos de material, tempo e qualidade.

O sr. mencionou que é intuitivo. Mas não parece muito evidente que a intuição, em um jogo racional como o xadrez, seja uma boa guia...

Vou dar um exemplo. Na sétima partida do campeonato mundial de 1894, entre o campeão Steinitz, de 57 anos, e o jovem alemão Lasker, de 25, o confronto estava equilibrado. Lasker, que usava as peças brancas, havia feito um jogo forte na abertura e depois de algumas complicações teve de sacrificar dois peões. Hoje ninguém se surpreenderia se um grande mestre abandonasse a partida em circunstâncias tão desfavoráveis. Mas Lasker não o fez. Foi ainda mais agressivo, tentando complicar as coisas, e sacrificou mais uma peça, fazendo um ataque que Steinitz não entendeu. O campeão fracassou. A interpretação foi que o velho campeão não era mais o mesmo e que havia decaído por conta da idade, não da qualidade. No entanto, quando analisei a partida em profundidade e com a ajuda de um computador, descobri outra coisa. É verdade que Steinitz havia estado em posição vencedora, mas tinha errado numa etapa anterior. Quando Lasker sacrificou a peça, o campeão já estava perdendo. O interessante é que Lasker fez as melhores jogadas possíveis. Não poderia ter calculado; sua intuição o levou na direção correta. Para mim, é uma boa demonstração de que, se confiarmos em nossa intuição, obteremos melhores resultados. Cada vez que revejo as partidas dos grandes campeões descubro que, sob pressão, eram mais eficazes. Em situações de pressão, nossos sentidos ficam alerta. Em momentos de calma, tendemos a relaxar e perdemos alguns elementos vitais para avaliar corretamente uma situação.

A intuição é algo inato ou pode ser adquirida?

Todos têm intuição, mas precisamos usá-la com mais freqüência. É como um músculo que deve ser treinado. Não nos guiaremos pela intuição se não tivermos confiança em nós mesmos.

Desenvolver a confiança está relacionado com ter coragem de agir sem medo de errar, que é algo que o sr. recomenda em suas palestras, não é verdade?

O que eu recomendo não é errar propositalmente, mas aceitar a possibilidade de cometer erros. Muitos temem errar e isso os impede de avançar. O medo apresenta-se de diversas formas na tomada de decisões: como medo de errar, medo das mudanças, do desconhecido, de magoar pessoas queridas... Entretanto, como haverá erros, é melhor se preparar psicologicamente e se sentir confortável com a idéia de que certamente alguma vez você vai errar. Quando superar esse temor, você poderá aprender com seus erros e sua carreira não vai parar. Acho que o maior problema de Bobby Fischer depois de se consagrar campeão mundial em 1972 foi o medo de perder. Aí a vida pára. As pessoas têm medo de errar, mas, se reconhecerem esse medo, pode ser mais objetivo e perceber quando estão prestes a cometer um erro. Desse modo, elas não ficam congeladas, têm um ponto de vista mais abrangente.

Os computadores não partilham esse temor. Quando o homem e a máquina se enfrentam, o que é superior, uma boa estratégia ou a grande potência de cálculo?

A estratégia é superior à força bruta do cálculo. O cálculo e a pesquisa podem dar apoio à estratégia, mas não substituí-la. Em 2003 joguei com um dos melhores programas de xadrez do momento, o X3D. Na segunda partida, eu vinha de uma derrota estrondosa. Como eu queria reencontrar meu jogo, esforcei-me ao máximo para me recuperar. Tinha as peças brancas e tentei criar uma posição fechada, porque esse tipo de jogada dá poucas possibilidades para a máquina usar a potência de cálculo. Eu pensava no longo prazo, usava uma estratégia. A máquina não entendia o que estava acontecendo nem percebia meu plano. O interessante é que a máquina jogava melhor do que muitos jogadores de xadrez, mas qualquer um deles poderia perceber que a posição da máquina piorava. Quando ela reconheceu isso, já era tarde e, poucas jogadas depois, os programadores desistiram em nome da máquina.

Como o Sr. se preparava para as competições?

Procurava informação, novas idéias, novas aberturas. Estudava o jogo de meu oponente tentava pensar coisas que o incomodassem. Era um enfoque misto. No final de minha carreira, o elemento computacional tornou-se mais importante. Cada semana surgiam novas idéias, algo que hoje acontece diariamente. No entanto, 20 anos atrás, a gente tinha uma grande idéia e podia trabalhar nela durante alguns meses, usá-la e depois de dois meses utilizá-la novamente para derrotar outro rival. Hoje, quando surge uma boa idéia para uma abertura, em menos de 24 horas está na internet. As boas idéias se tornaram propriedade de todos e isso nos obriga a sermos mais criativos. Como afirmei antes, é preciso tomar decisões mais rápidas.

Outro paradoxo é que a maior quantidade de informação tende a reduzir a criatividade, porque nos apoiamos nos dados. Além disso, todos tentam ter boas idéias, e as boas idéias funcionam uma única vez, por isso é preciso ser mais criativo. A criatividade desempenha um papel muito importante, porque é o que marca uma diferença. Antes existiam diferentes níveis de acesso à informação; hoje tudo é mais homogêneo. Quase todos conseguem o mesmo hardware; a diferença está no software. Por isso, a criatividade, a coragem, a intuição, a capacidade de adaptação são coisas que estão se tornando mais importantes. Acredito que é tempo de falar mais sobre psicologia, porque o mecanismo de tomada de decisões é muito mais importante do que a informação.

O sr. fez treinamento com psicólogos?

Não estudei psicologia nem trabalhei sistematicamente com psicólogos, mas, se você joga xadrez, está envolvido o tempo todo com a tomada de decisões, e é por isso que precisa aprender algo de psicologia.

Quais as lições do xadrez que o Sr. aplica em sua vida cotidiana?

Uma das mais importantes foi aprender a ser objetivo, motivo pelo qual eu pude permanecer tanto tempo no topo. Não me envergonho de meus erros nem de aprender com os mais jovens. Para mim, a verdade última era a mais importante e, se eu percebesse que estava errado, não hesitava em reconhecê-lo, primeiro para mim mesmo e depois diante dos outros. Atualmente, em minha atividade política na Rússia, estou envolvido em um jogo sem regras, ou melhor, com uma única regra – a de que meus oponentes do Kremlin [sede do governo russo] mudam as regras de acordo com sua conveniência. Saber que esta é precisamente a regra me permite formular uma estratégia de longo prazo. Estratégia é sobrevivência tática e é desenhar planos alinhados com o potencial pessoal.

Por que o sr. deixou de competir?

Tinha outras coisas para fazer. Para mim, a vida tem a ver com marcar uma diferença. Assim eu o fiz no xadrez por 25 anos. Agora acredito que minha experiência, minha energia e meus recursos podem ser destinados a outra coisa. Tenho algo para falar e não quero ficar quieto. Sinto que o mundo está engasgado, sem visão estratégica, e que precisamos encontrar um rumo. A entrevista é de Viviana Alonso, colaboradora de HSM Management.

Saiba mais sobre Kasparov

Garry Kasparov se tornou o mais jovem campeão mundial de xadrez da história aos 22 anos, em 1985, e defendeu seu título durante os15 anos seguintes. Suas lendárias partidas contra Anatoli Karpov, o campeão anterior, e contra o computador Deep Blue, da IBM, transcenderam o âmbito do xadrez e contribuíram para difundir o jogo entre públicos não-tradicionais.

O grande mestre argentino Oscar Panno o considera o melhor Saiba mais sobre Kasparov enxadrista de todos os tempos, por sua capacidade de fazer tanto um jogo ofensivo – seu estilo característico – como um defensivo. Desde 1991 Kasparov é colunista do Wall Street Journal e atualmente, afastado do circuito profissional de xadrez, viaja pelo mundo como palestrante. Ele discorre sobre os problemas da Rússia atual e convoca o mundo a desenvolver visão estratégica.

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